Com forte teor político e de resistência, sessão foi realizada na ocupação Carolina Maria de Jesus, e contou com a presença de Wagner Moura, atores e parte da equipe técnica do longa. Evento encerra com chave de ouro a estreia do filme, que iniciou jornada no circuito comercial.
por Eduardo Viné Boldt
Em 2017, Wagner Moura visitou a ocupação ‘Povo sem Medo’, em São Bernardo do Campo, com parte da equipe que viria a participar do filme Marighella. Naquela visita foi firmado um compromisso entre o ator e o coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), Guilherme Boulos: quando o filme fosse lançado, ele seria exibido em uma ocupação do MTST.
Após quatro anos de muita luta, Marighella chega nas telas do cinema e encerra sua jornada de lançamentos em sessão histórica promovida pelo MTST e o CineB Solar. A exibição ocorreu na noite de quinta-feira (11), na ocupação Carolina Maria de Jesus, localizada no bairro de Laranjeiras, Iguatemi, na divisa com São Matheus, zona leste da capital paulista.
O evento contou com a presença diretor do filme, Wagner Moura, e dos atores Henrique Vieira, Bella Camero, Humberto Carrão e Felipe Braga, além de parte da equipe técnica do longa-metragem. Guilherme Boulos, coordenador nacional do MTST e o idealizador do projeto CineB Solar e vice-presidente da CUT Estadual, Luiz Cláudio Marcolino, marcaram presença na noite de exibição.
Ocupar
Há oito anos no movimento, Cláudia Garcez é coordenadora do MTST e organizadora da ocupação Carolina Maria de Jesus. Ela explica que o terreno estava a mais de 40 anos abandonado. Em maio desse ano, as primeiras 600 famílias ocuparam a área. Hoje, mais de 4200 núcleos familiares fazem parte da comunidade que se formou naquela área que antes não tinha função social.
Josué Rocha faz parte da coordenação nacional do MTST e exalta a exibição do filme na ocupação. “É muito simbólico a gente fazer uma sessão do filme Marighella aqui na ocupação. Um filme que simboliza tanta luta de um dos personagens históricos brasileiros, e que hoje se encontra com o seu público, que é um público de resistência e de luta”, afirmou o coordenador.
A organização do evento começou logo cedo, contando com enorme esforço logístico e de produção de toda a equipe do CineB Solar e da Brazucah Produções. O responsável do CineB Solar Cidálio Vieira, junto com Cynthia Alário e Marco Costa, da Brazucah, coordenaram a montagem de uma sala de cinema no coração da ocupação em parceria com a Via TV.
A enorme estrutura contou também com a indispensável participação dos moradores e moradoras da ocupação, organizados pelos coordenadores e coordenadoras do MTST. Mais de 150 pessoas colocaram a “mão na massa” para levantar, em apenas 4 horas, um dos maiores cinemas do país, com capacidade para 800 pessoas.
Resistir
A exibição na ocupação Carolina Maria de Jesus foi o último compromisso de estreia de Marighella, que chegou oficialmente nos cinemas brasileiros na quinta-feira, 4 de novembro. Em pouco tempo o longa rompeu a marca de 100 mil espectadores em 300 salas, com sessões lotadas concorrendo com as estreias de filmes internacionais.
O filme sofreu com forte censura do governo Bolsonaro, e teve recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) negados pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) ainda em 2019, atrasando em dois anos a exibição. Marighella foi violentamente atacado por grupos bolsonaristas nas redes sociais. O lançamento realizado depois de tantas dificuldades foi por si só um ato de resistência.
O ator Humberto Carrão relembra esse processo. “Esse filme tem histórias inacreditáveis. Ele está pronto há dois anos. Primeiro teve resistência de censura, depois uma pandemia. Mas está acontecendo, é uma loucura! O filme virou um evento, de importância política e de retomada cultural. Esse filme já prometia que ele poderia fazer coisas importantes, e ele fez”, destaca o ator que interpreta o guerrilheiro Humberto no longa.
O filme sofreu na pele o momento crítico e antidemocrático pelo qual passa o país. Apesar dos ataques recebidos, o diretor do filme, Wagner Moura, destaca a coragem das pessoas que vivem na ocupação e que lotaram a sessão nesta noite. “Eu tenho falado muito na dificuldade de lançar o filme, mas toda a vez que eu vou em uma ocupação, que eu encontro os movimentos, eu penso que a luta nossa é pequena. A luta é de quem está aqui, lutando por moradia, por casa, por terra, por direitos básicos”, exalta o diretor.
Wagner reafirma o caráter simbólico da exibição o filme na ocupação. “Para nós a ideia nunca foi somente falar sobre aqueles que resistiram a ditadura militar nos anos 60 e 70. A gente queria que [o filme] falasse de quem segue resistindo. E há poucas inspirações tão fortes quanto o MTST”, destaca.
Democratizar
Criado em 2007 pelo Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e região e realizado pela Brazucah Produções, o CineB Solar já atingiu um público superior a 75 mil espectadores em 160 bairros, em mais de 580 sessões gratuitas. Próximo a comemorar 15 anos, o projeto tem sua história marcada por exibições importantes na periferia e em movimentos sociais. “Foi a terceira vez que exibimos junto com o MTST. Bacurau fez sua pré-estreia em uma ocupação, e agora esse grandioso evento para a exibição de Marighella. Conseguimos reunir hoje mais de mil pessoas, um marco importante para o CineB Solar e a Brazucah”, celebra o coordenador do CineB Solar Cidálio Vieira.
O idealizador do projeto e vice-presidente da CUT Estadual, Luiz Cláudio Marcolino, salienta a importância da exibição. “Essa sessão no dia de hoje coroa o sucesso que vem sendo o CineB ao longo desses quinze anos. Nós começamos na zona oeste de São Paulo em caráter de teste em apenas três comunidades, e tínhamos como objetivo levar o cinema nacional a todos os cantos da cidade de São Paulo, Osasco e região, onde a população não tinha acesso ao cinema de qualidade”, relembra Marcolino.
“A periferia das grandes cidades não é um espaço privilegiado para a cultura. Há uma carência grande de salas de cinema, de exibição de grandes filmes. Então a gente está reforçando a importância de trazer cultura para a periferia”, expõe Josué Rocha.
Viver
Com estrutura montada, pipoca feita pelo Sr. Antônio e distribuída aos moradores, mais de mil pessoas assistira ao filme Marighella na noite chuvosa dessa quinta-feira. Todas as 800 cadeiras foram tomadas, restando apenas os espaços laterais para que o público excedente acompanhasse, de pé, a sessão.
Os moradores e convidados se emocionaram com a história do guerrilheiro que lutou pela democracia no Brasil, acompanhando atentamente o desenrolar da história. O elenco e a equipe técnica assistiram a sessão no meio dos moradores da ocupação, de pé, no fundo da tenda montada para a exibição. Ao final da sessão, subiram no palco e puderam falar com os espectadores.
O coordenador nacional o MTST, Guilherme Boulos, usou a palavra para exaltar os verdadeiros heróis nacionais. “Outro dia eu vi o Bolsonaro dizer que o Brilhante Ulstra é herói nacional. Esse filme está ai para dizer que Brilhante Ulstra não é herói nacional. É um monstro. Herói nacionais é Carlos Marighella. Heroína nacional é Marielle Franco. Heróis nacionais são aqueles que lutam por libertade”, disse Boulos sob aplausos da plateia.
Wagner Moura, emocionado, ressaltou os valores abordados na obra. “Toda vez que eu sinto que existe uma conexão entre o filme que fizemos, entre a luta de Marighella e a luta do povo LGBT, do povo da periferia, dos indígenas, dos sem-teto, dos sem-terra, eu acho que esse filme encontrou seu público”.
Assim com a cinco anos atrás, Boulos e Wagner selaram mais pacto ao final da sessão. “Que a gente assuma um novo compromisso de vocês voltarem aqui. Não para exibir um filme, mas quando isso aqui não for mais a ocupação Carolina Maria de Jesus, mas quando for o bairro o Carolina de Jesus”, concluiu o coordenador nacional do MTST.
Sobre o CineB Solar
Criado em 2007 pelo Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e região, o CineB passou a se chamar CineB Solar em 2018, quando passou a circular com uma van que gera, através de placas solares, a própria energia consumida no evento. Já atingiu um público superior a 75 mil espectadores, 160 bairros percorridos, em mais de 580 sessões gratuitas realizadas em comunidades e universidades de São Paulo. Nesse momento de isolamento, para evitar aglomerações, se reinventaram e prepararam novos projetos: CineB on-line, CineB Solar na Janela e CineB Autorama, ações para que todos possam ficar em casa e se divertir com uma sessão de cinema.
Filme exibido:
Marighella – (Wagner Moura – Brasil – 2021 – 155 minutos – 16 anos – Drama).
Sinopse: 1969. Marighella não teve tempo pra ter medo. De um lado, uma violenta ditadura. Do outro, uma esquerda intimidada. Cercado por guerrilheiros 30 anos mais novos e dispostos a reagir, o líder revolucionário escolheu a ação. Em Marighella, o inimigo número 1 da Ditadura Militar tenta articular uma frente de resistência enquanto denuncia o horror da tortura e a infâmia da censura instalados por um regime opressor. Em uma experiência radical de combate, ele o faz em nome de um povo cujo apoio à sua causa é incerto — enquanto procura cumprir a promessa de reencontrar o filho, de quem por anos se manteve distante, como forma de protegê-lo.