Para ouvir as vozes abafadas

No Sábado o CineB Solar exibirá o filme Minha Fortaleza: os filhos de fulano, na Vila Flávia, em São Matheus. É uma oportunidade da equipe de produção do longa voltar ao palco onde o documentário foi gravado. A pandemia impediu que esse encontro acontecesse antes. Em entrevista exclusiva para o CineB Solar, a diretora Tatiana Lohmann fala sobre o filme e sobre a expectativa para o reencontro com os moradores e protagonistas dessa história. 

Por Eduardo Viné Boldt   

A diretora, montadora e fotógrafa Tatiana Lohmann foto: reprodução

Eduardo Viné Boldt: A ideia do filme começa em 2002, e foi sendo desenvolvida ao longo do tempo. Você conseguiu identificar já naquela época a relação com as mães como peça fundamental dentro daquela população masculina da periferia? Gostaria que você falasse sobre as semelhanças entre o que você viu em 2002 e hoje, pois o tema continua muito atual.

Tatiana Lohmann: O Brasil é um país que tem essa história: do pai que não assume a paternidade. Desde os primórdios da colonização você vê homens chegando, que muitas vezes estupravam as mulheres indígenas. Daí nasciam filhos que não eram acolhidos e reconhecidos por esses pais. Isso vem se repetindo. Depois vieram as mulheres africanas escravizadas. Então muitos filhos nascidos dos senhores com as escravas domésticas não eram assumidos. Já existe esse histórico.

Isso é um dado frequente na maioria das culturas do mundo. A ideia de que cabe à mãe a responsabilidade de criar os filhos não é apenas uma característica do Brasil. Mas como estamos nesse recorte, olhando para o Brasil e olhando para a periferia de um grande centro urbano, essa situação se agrava. Porque tem muita gravidez precoce, onde os meninos não assumem os filhos.

Na antropologia se usa um termo para as casas chefiadas por mulheres, que se chama família monoparental feminina. Esse número é muito maior nas periferias. Ele vem aumentando exponencialmente nas últimas décadas. Talvez tenha o componente das mulheres não se sujeitarem mais a determinadas relações, preferindo ficar sozinha diante de certas circunstâncias, tendo coragem de se separar de um marido violento, por exemplo, como é o caso de uma das mulheres no filme. 

Quando a gente começou esse projeto, eu conheci o Macário e a dona Edith, lá no set do Carandiru. Ele me chamou para fazer um videoclipe, porque ele disse que tinha feito um rap em homenagem a mãe e ia tatuar o retrato dela no peito. Quando cheguei para gravar percebi, no atelier de tatuagem, que nos álbuns havia muitas imagens de tatuagem com o retrato de mães ou com o nome de mães. Dava para dizer que tinha uma cultura em torno disso. Naquele dia eu falei com o Macário: “Eu acho que isso não é um clipe não. Acho que tem mais coisa aqui”. 

Esse projeto teve vários formatos. A gente foi pré-finalistas de um de edital do Rumos, mas acabamos não sendo selecionados. O tempo nos permitiu ir elaborando. A vida levou a gente para outros lados, mas o Macário nunca me deixava desistir. De tempos em tempos, ele aparecia e falava: “Bora lá?”. A gente teve a oportunidade de amadurecer.

Esse assunto foi vindo para frente. Naquela época não era frequente você encontrar na capa da Ilustrada um filme, um disco, alguém discorrendo sobre esse assunto. Mesmo essa ideia da família monoparental feminina. Pelo menos eu não tinha familiaridade com ela. Hoje em dia isso é corriqueiro até em novela da Globo. 

EVB: Seu filme tem muito amor envolvido, mas tem muitas feridas abertas. Nesse sentido eu acho o primeiro diálogo representativo, quando o Júnior fala com o pai e ele percebe que o pai não o reconhece. Também no reencontro de um dos personagens com a mãe que o tinha abandonado. Nos diálogos entre os homens em uma das cenas, talvez haja uma tentativa de eles não reproduzirem essa violência que eles sofreram. Eu queria que você falasse sobre isso, dessa tentativa de “cura” buscada por eles.  

TL: É bem isso mesmo. O ponto para mim, enquanto mulher que também teve um pai ausente, foi muito mais a condição da mãe – que passa a viver uma vida muito sacrificada – tendo que criar esses filhos sozinhas. Em geral, trabalhando em bairros distantes, saindo cedo e voltando tarde. Preocupada com esses filhos, que ficam frequentemente na rua, sendo criados pela rua. Então me interessava o quanto ela acabava se tornando essa grande heroína da quebrada, abnegada. Mas ela sacrificava um aspecto do “feminino”: a possibilidade de encontrar um outro namorado fica muito dificultada.

Eu estou olhando para as relações do filho homem com a sua mãe. Esse filho homem muitas vezes vai ficando superprotetor e assumi o papel do pai. Isso dificulta a aproximação de outros homens. Era o que me interessava.

Eu me surpreendi em perceber o quanto o filme acessa os homens, justamente porque ele está olhando para a masculinidades. Eu nem tinha esse termo familiarizado. Mas houve muitas conversas em torno disso e de fato uma coisa eu sabia: esses filhos, que no começou o projeto eram apenas “filhos”, hoje em dia estão procurando serem pais diferentes. Nesse sentido, por mais que o filme traga uma série de dores, como você disse, de feridas abertas e de aspectos problemáticos das dinâmicas de um bairro como a Vila Flávia, eu acredito que tem um processos de cura, particularmente nesse aspecto dos pais tentando se redimir. 

EVB: Você teve o filme Slam lançado em 2017, e o Minha Fortaleza lançado em 2020… 

TL: A pré-estreia foi no festival do Rio em dezembro de 2019 e lançamos no primeiro semestre de 2020. Foi uma decisão bem arriscada estrear durante a pandemia, porque a gente tinha que lançar em salas de cinema. Mas era uma situação em que você lança, mas não tem coragem de divulgar para as pessoas irem. Eu mesmo não fui às sala de cinema. Ao mesmo tempo é um projeto muito antigo. Chega uma hora que você precisa fechar um ciclo, que você precisa devolver aquilo para a comunidade. 

Por isso que essa sessão é muito importante para nós. Eu agradeço de verdade a parceria com o CineB Solar, porque o que eu sempre quis fazer – mais que tudo – era essa sessão. Na verdade, o meu plano inicial era que ela fosse a primeira, a abertura de caminhos para o filme. Mas acabou que o filme foi selecionado para a competitiva do festival do Rio. A gente achava que logo depois estaríamos fazendo essa festa nas ruas da Vila Flávia.  O que só está acontecendo agora, ainda como com máscara, com restrições, mas que para nós é o fechamento do ciclo.  

Tivemos uma estreia no Cine Sesc no um pouquinho antes do lockdown. Ainda bem, porque foi a grande sessão. Mas agora que vai ser a festa na rua. 

EVB: Essa é uma temática que você tem desenvolvido nos seus documentários. Para os próximos você continuará com um foco na periferia, com essa perspectiva quase etnográfica? 

TL: Para falar a verdade sempre foram os filmes que me chamaram. Mas é claro que você vai se familiarizando com certos assuntos. Meus projetos mais antigos olhavam bastante para questões de gênero. Eu não posso dizer que eu esteja tratando da questão racial, mas ela permeia muito fortemente os meus dois últimos filmes. O Slam – Voz de levante também foi um projeto muito longo. Quando a gente começou a gravar esse fenômeno dos poetry slams no Brasil, existia uma única comunidade, um único evento de poetry slam em São Paulo, que era o ZAP. E quando a gente lançou o filme já existiam 150 comunidades de slams. Antes da pandemia, já existiam quase 300. Agora esse número deve ter caído um pouco, porque no slam a força é presencial. Por mais que eles continuem acontecendo online, é claro que não é a mesma coisa, porque é performance, é corpo em cena. Ao vivo é outra coisa.

Mas o fato é que, quando começamos a fazer esse filme nesse único slam que existia, que acontecia na Pompéia, ele era muito misto: tinha muitas pessoas brancas e muitas pessoas negras. Eu acho que dá para dizer que tinha uma maioria de pessoas brancas, talvez pela localização geográfica. Poucas mulheres poetas. Quando a gente chegou em 2016, quando fizemos as últimas gravações do filme, a cara já era totalmente diferente. O slam já tinha assumido um aspecto eminentemente político, identitário, e a maioria dos participantes que fizeram esse “bum” no Brasil inteiro são jovens, periféricas e periféricos, pessoas negras e majoritariamente mulheres.  

Então você vê: não foi exatamente daí que partiu o meu olhar, mas é claro que era um olhar que se interessa por vozes que não estão sendo olhadas pela cultura hegemônica.

Tatiana Lohmann

Hoje em dia também já tem outros acessos e canais com perfis mais hegemônicos disputando profissionais e artistas que sejam pessoas negras, que sejam mulheres. Tem um movimento muito diferente de quando começamos tudo isso. E o Minha Fortaleza nem fui eu quem fiz o casting. O Macário me chamou para fazer o clipe, depois de uns anos ele me apresentou um Negotinho com a Dona Vera, a Jô Maloupas, e depois de muitos anos a gente conseguiu captar um valor para poder começar o filme para valer.

A gente já tinha filmado um tanto com dinheiro do bolso em 2013. Em 2015 a gente conseguiu ganhar um edital do BNDES de produção. Quando eu cheguei para ele e falei “gente, vamos voltar a uma ideia que a gente já teve lá atrás, de ter uma terceira família que tenha um filho com passagem pelo sistema prisional?”, os dois na mesma hora disseram: “Barão!”. Nem fui eu que escolhi. E naquela época eu nem tive um olhar de pensar assim: “acho importante que sejam duas famílias negras e uma branca”. Foi o que se “constelou” ali. Inclusive eu acho que hoje em dia é impossível para mim não estar atenta a tudo isso. Jamais deixaria de perceber que eu estou fazendo um filme que tem majoritariamente famílias negras. Que as mulheres jovens que estão no filme e são mais “modernas”, com um pensamento mais feminista, são brancas. Toda essa “constelação” que diz respeito ao racial, hoje em dia salta muito mais aos olhos. Na época eu fui seguindo o fluxo da vida, mas hoje em dia eu acho que é impossível isso. Eu acho que temos que tomar decisões muito mais calcadas em como a gente equilibra esses aspectos diante dos debates e das revisões que estão acontecendo.

Sobre o CineB Solar
Criado em 2007 pelo Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e região, o CineB passou a se chamar CineB Solar em 2018, quando passou a circular com uma van que gera, através de placas solares, a própria energia consumida no evento. Já atingiu um público superior a 75 mil espectadores, 160 bairros percorridos, em mais de 580 sessões gratuitas realizadas em comunidades e universidades de São Paulo. Nesse momento de isolamento, para evitar aglomerações, se reinventaram e prepararam novos projetos: CineB on-line, CineB Solar na Janela e CineB Autorama, ações para que todos possam ficar em casa e se divertir com uma sessão de cinema.

Serviço
Cinema Brasileiro em São Mateus
Dia: 11 de dezembro, sábado, às 19h
Local: Rua Vitaliano Roteline, s/n

Retirada de convites: falar com Negotinho
Contato 11 958754922
No endereço: Rua Cônego José Maria Fernandes 127c / 128
São Mateus em Movimento

Plano B: caso chova a exibição será na Rua Archangelo Archina 587 – (Favela Galeria)

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