Texto, fotos e depoimentos: Thaís Nozue
Segunda-feira, 22, aconteceu mais uma sessão de CineB Solar na Escola Estadual República do Panamá, na Vila das Belezas, zona sul de São Paulo. Cerca de 100 pessoas assistiram ao filme “Medida Provisória” em sessão ao ar livre, no estacionamento da escola. Estavam presentes alunos da tarde e da noite, professores, direção, funcionários e convidadas de outras escolas.
A pipoca já estava pronta quando os alunos começaram a chegar no espaço reservado para o CineB Solar. Com tudo organizado, todos foram se acomodando nos assentos, ansiosos pela sessão.
A escola já é parceira do projeto e recebeu o CineB Solar pela terceira vez, além de terem ido à Quadra dos Bancários acompanhar a sessão histórica de “Marighela”. O diretor Diogo Brauna conta sobre esse feat de sucesso.
“Essa parceria com o CineB já tem um tempo. Hoje vamos para o terceiro filme aqui na escola. A gente se conheceu através de contato com colegas em comum , então a gente já conseguiu trazer três sessões pra cá e uma lá no Sindicato (dos Bancários), que inclusive foi muito legal do ‘Marighela’, com movimentos sociais, acho que lá a atmosfera foi muito bacana para os estudantes e professores.”
Brauna fala da importância dessa relação de cinema com educação.
“É uma atividade fundamental. Primeiro pela temática do cinema nacional, que precisa ser valorizado e prestigiado. A gente tem filmes de excelentíssima qualidade, um cinema muito crítico, inclusive. Um cinema que traz discussões muito importantes e, dentre elas, a temática da escravidão, do preconceito que ainda está muito presente no Brasil. O preconceito estrutural é algo real, principalmente os estudantes da classe trabalhadora, as famílias da classe trabalhadora sentem muito mais na pele e às vezes é algo dito de modo muito técnico. Então, o cinema tem uma característica muito legal é trazer isso por meio do lúdico, por meio de situação que colocam a gente pra pensar, conversar e crescer. Não é meramente um entretenimento, mas é uma oportunidade de aprender com a estética cinematográfica. Inclusive temos professores com pós graduação em cinema, estudam cinema e então acaba sendo uma atividade fundamental pra gente.”
Convidadas de ouro
O CineB Solar, nos seus 15 anos de vida, tem sido prestigiado por diversas escolas e bastante disputado. Todo mundo quer que a sua comunidade escolar transformada em sala de cinema. Fabíola Xisto, diretora escolar e Fabíola Kiss, coordenadora pedagógica, ambas da escola estadual Luiz Gonzaga Pinto Silva também localizada na zona sul foram até à Republica do Panamá conhecer melhor o projeto e fazer o pedido de pertinho.
“Viemos aqui a convite de uma colega de outra instituição ver e conhecer um pouquinho do CineB e tentar levar vocês pra conhecer nossa turma. Nossa escola está na periferia da zona sul. Nós temos por volta de 870 alunos. São alunos bem presentes, bem participativos. A escola é uma PEI, então os alunos ficam bastante tempo lá, nós temos disciplinas diversificadas e tentamos levar pra eles tudo o que é mais dinâmico, mais prazeroso e o cinema traz isso. Por isso viemos aqui, pra fazer esse convite pra vocês terem o prazer de estarem lá com a gente.” , disse a diretora Xisto.
“Gostaríamos muito que vocês estivessem lá conosco, afinal de contas trabalhamos com uma parte diversificada. Acreditamos que o cinema faça esse intermédio entre a cultura e a educação. Hoje, na escola, nós temos um projeto em uma das eletivas que se chama ‘Literarte’, que fala exatamente sobre literatura e arte. No primeiro semestre eles fizeram um teatro e agora no segundo semestre eles produzirão um filme, um curta metragem, sobre a periferia. Gostaríamos muito que vocês estivessem lá com a gente pra conhecer nossos alunos, para que eles tivessem esse contato mais próximo ao cinema.”, completa Kiss, coordenadora pedagógica.
Também interessada em receber uma sessão na sua escola, Joelma Rodrigues, Auxiliar técnica de educação da EMEI Mário Sette, foi à sessão de segunda-feira, falar com o Cidálio Vieira, coordenador do projeto, para reivindicar seu cinema na escola.
“A EMEI é uma escola de educação infantil, o antigo Pré. Eu conheci o projeto através do Diogo, diretor aqui da República do Panamá, que ele foi meu professor da faculdade e ele trouxe algumas vezes o Cine pra cá e eu super me interessei, achei incrível esse projeto de levar o cinema para as pessoas menos assistidas. Eu vejo que o projeto trabalha muito com crianças a partir do ensino fundamental I, II e ensino médio e eu gostaria muito de levar pra minha escola que são crianças da educação infantil, de quatro a seis anos. Porque se os jovens têm dificuldade de acessar, quanto mais as crianças que os pais não vêem essa importância de levar as crianças ao teatro, ao cinema, além também de não terem o acesso. A gente vive numa crise muito complicada, muitas famílias não tem acesso nem à alimentação, quanto mais a um divertimento, um entretenimento cultural. Então, é de suma importância esse projeto, tanto que está aí há 15 anos e eu quero muito levar vocês pra conhecer a minha escola e a minha comunidade ”.
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Microfone aberto na escola
“Medida Provisória” pede microfone aberto. Denso, o filme toca em feridas ainda abertas na sociedade brasileira, despertando inúmeros sentimentos. “Uma das principais ideias que Medida Provisória busca levar para o público é a de coletividade, o que fortalece ideias e torna nossa vivência mais potente”, disse Lázaro sobre o filme.
Ao final da sessão, alunos e professores pegaram o microfone para fazer suas reflexões e levantar questões importantes sobre o debate racial, cinema, referências literárias negras e muito mais.
Marília Cruz, professora de Língua Portuguesa, conta que o filme a impactou.
“Esse filme é muito impactante por mostrar uma realidade assim não desvelada. A gente que em alguns momentos no Brasil vivemos em uma bolha e daí, um tipo de filme desse estoura a bolha e a gente percebe como o racismo é violento e a que ponto ele pode chegar. O filma nada mais é do que falas retiradas do cotidiano no Brasil e como isso é impactante ver essa representação.”
Marília relata também um caso de racismo que ela mesmo sofreu de uma aluna.
“Recentemente uma aluna me perguntou se queria ganhar um pente de presente. Ela achou que isso não era racismo. Mas e se fosse com uma professora diferente? Será que ela ofereceria o pente?”
A professora fala também do racismo estrutural. “A gente pensa em como o racismo está impregnado em detalhes, na nossa fala, na nossa cultura, nas nossas ações. “
Marília faz suas considerações finais, apontando algumas referências trazidas no filme. “E esse filme traz muitas referências. Uma delas, quando o Seu Jorge pinta o corpo de branco, tem um livro do Franz Fanon chamado ‘ Pele negra. Máscaras brancas’ que traz essa discussão a respeito do racismo velado, mas que precisa fazer o enfrentamento. E também tem uma música, um poema recitado pelo Emicida, chamado ‘Súplica’ que diz: ‘pode nos tirar tudo menos a música. Mesmo acorrentados seremos livres’. É de uma moçambicana Noémia de Souza”.
“Foi um filme sensacional, fantástico! E é um filme extremamente necessário pra atual situação do país e do mundo com tanto casos de racismo. Infelizmente depois de tanto tempo, algo que continua tão recorrente. Então esse filme é muito emblemático. Uma grata surpresa. Recomendo a todos que assistam. E a iniciativa do CineB sensacional, maravilhosa, é algo que a gente precisa. Em tempos de ódio, o amor é a causa, é a resistência. Então, em tempos de ódio, que a arte esteja presente e a gente continue lutando com as armas nós temos que é a arte, o amor e resistência.”, relatou o professor de História, Felipe Araújo Rodrigues da Silva.
Aluno do 1º. G, Igor Cirilo falou sobre a experiência da sessão e suas considerações sobre os aprendizados da noite.
“Eu vim aqui, esperando um filme e vou sair daqui com uma experiência memorável. Eu assisti com os meus amigos, alguns choraram e eu gostei bastante do filme. Achei uma boa crítica e eu gosto da ideia de um mundo distópico, onde as pessoas não sabem os limites, não sabem os próprios limites e não sabem reconhecer que estão erradas.”
Donizete Ribeiro, professor de Língua Portuguesa, também foi ao microfone, parabenizou o aluno Igor e falou sobre o filme.
“Parabéns que você (Igor) falou sobre um mundo distópico. Adorei! Maravilhoso! De fato, o filme mostra um mundo distópico, assim como são os livros ‘1984, ‘Farenheit 451’ etc. Esse tipo de arte serve pra gente prestar atenção em algo que acontece agora e que não pode acontecer no futuro ou o que não deveria acontecer no futuro. Esse é um futuro que nós não gostaríamos de ver, isso é distopia.”
O professor pontuou também sobre as referências importantes que constam no filme.
“E como professor de Língua Portuguesa, além de todos os elementos de racismo que a gente vê no filme, da resistência, os quilombos que são chamados de ‘afrobunkers’ e aqui na escola a gente tem uma grafite que é a cara do filme e que mostra o quilombo, tem as questões das referências literárias, por exemplo, o close na Rua Machado de Assis, que é um escritor negro, o nome de alguns personagens que remetem à obra de Machado, que é a Capitu e Santiago, que era o sobrenome do Bentinho. Então, você percebe que é uma obra cinematográfica que traz um monte de referências da escrita, da literatura. Tanto essa questão de um filme distópico, personagens de um escritor negro brasileiro, agora no fim aparece a Conceição Evaristo. Eu achei o filme maravilhoso. Parabéns a todos!”
Outro aluno que saiu com reflexões importantes, foi o Guilherme, do 1º. G.
“Eu queria parabenizar o pessoal do projeto, achei legal. É a primeira vez que eu to assistindo desse jeito, dessa forma, achei muito bacana. Gostei bastante do filme também e acho importante ressaltar que todos nós temos a consciência de como o racismo, apesar de hoje em dias as pessoas camuflarem mais ele e não demonstrar tão abertamente quanto nos tempos da escravidão, ele ainda está muito presente hoje em dia, tanto nas maneiras como a gente age, como a gente pensa, como a gente fala, de todas as formas. Então, acho importante que todo mundo tenha consciência. O filme é muito bom, traz bastante reflexão e que a gente não pode esquecer de sempre estar , todos os dias, batalhando contra isso, sempre resistindo e nunca desistir .”
Professor de Geografia, Daniel Ferreira Santos Sobrinho falou sobre as referências encontradas no filme também.
“Bom, todo mundo já falou o que era pra ser dito sobre as referências maravilhosas. E daí, eu puxando o gancho do que o Doni disse, é um filme pra gente assistir de novo e relembrar algumas histórias. Não por acaso o roteirista colocou o nome do ator principal de Gama, lembrando o Luiz Gama, nosso primeiro advogado negro, abolicionista. Não por acaso o nome da mulher que coage as pessoas para voltar para África se chama Isabel, a lei de 1888. Então vejam; é muita referência no filme pra gente rever e debater isso e pensar sobre todas as coisas.”
Daniel completa a fala, fazendo sua análise sobre o filme.
“Acho que o Lázaro foi muito competente e muito delicado no trato com a história brasileira, ao retratar nossa história nesse filme, que é maravilhoso. É de uma própria e acho que pra quem conhece um pouco de cinematografia até estranha, porque tem muita câmera na mão, muito movimento, a câmera na mão pra dar a sensação de que as pessoas estão caminhando, a roda gira, então é um esplendor. Parabéns ao CineB Solar como sempre trazendo a sétima arte, trazendo pra escola e a gente ter um momento maravilhoso como esse.”
Último participante de noite foi Antônio Jeová Negreiros Bastos, Agente de Organização Escolar.
“A escola tem uma visão libertadora por ter chamado o Cidálio e a equipe pra cá. Eu gostei muito do filme e da sessão.”
De fato, o filme emociona, traz reflexões e promove debates fundamentais para o avanço de uma sociedade que se pretende mais justa.
O CineB Solar
CINEB SOLAR é um circuito itinerante de cinema realizado pelo Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região e pela Brazucah Produções. Desde 2007, o projeto já atingiu um público de 84 mil espectadores em mais de 639 sessões gratuitas realizadas em comunidades e universidades de São Paulo. Percorremos cerca de 142 bairros da cidade de São Paulo e 18 cidades fora de São Paulo
Ao longo destes 15 anos criamos o Selo CineB do cinema brasileiro , com 4 DVDs que contém no total 18 curtas mais bem avaliados pelo projeto. No Prêmio CineB Solar do Cinema Brasileiro premiamos com troféu 217 entidades e 156 diretores dos filmes exibidos. A iniciativa busca democratizar o acesso ao cinema nacional e divulgar os filmes produzidos no Brasil.
Já foram exibidos na tela do CINEB SOLAR 153 longas-metragens e 105 curtas-metragens, além da realização de pré-estreias exclusivas. Nesse momento de isolamento, para evitar aglomerações, nos reinventamos e preparamos novos projetos: CineB on-line, CineB Solar na Janela e CineB Autorama, ações para que todos possam ficar em casa e se divertir com uma sessão de cinema.